Quando tomamos algumas decisões em nossas vidas, ou quando nos comportamos de acordo com nossos desejos, podemos, às vezes, machucar aqueles que amamos. Digo os que amamos aqui nossos pais, e não nossos amigos e companheiros, apesar de também podermos machucá-los. Mas antes de tudo preciso contar um pouco de mim para entenderem o que quero dizer com essa carta. No dia dois de janeiro de 1987 nascia um menino pesando 3,9 kg que passou a se chamado de Carlos. Naquele dia feliz meus pais já imaginavam um futuro para mim assim como o fizeram com minha irmã e meu irmão alguns anos antes. Sabiam a responsabilidade de educar aquele novo ser para que ele fosse uma pessoa que pudesse ser admirada.
Alguns anos se passaram e meu peso já estava dez vezes maior, não lembro bem minha idade, mas dizia que quando crescesse gostaria de ser estilista. Um tanto quanto controverso, pois a visão das pessoas do local onde crescia era de que estilistas homens eram gays e assim queriam ser mulher. Hoje vejo esses comentários como um mundo restrito onde as pessoas não podem perceber a beleza da diversidade. Nem todo estilista é gay, mas isso não importa agora. De certo modo essa vontade me foi privada quando criança e passei os anos seguintes ganhando peso e me espelhando em meu irmão pelo medo de demonstrar algo que pudesse vir a ser interpretado de forma errada. Gostei de algumas garotas nesse período, mas as relações não iam adiante. Escutava metal pesado por influência do meu irmão. Deixei o desenho de lado, talvez tenha reprimido uma possível qualidade minha nesse período, a possibilidade de desenhar bem, o bastante para se um estilista. Passei a me interessas por outros assuntos do meu dia-a-dia, e comecei a sonhar com a arqueologia, me imaginando em sítios arqueológicos da mesopotâmia, pesquisando a civilização babilônica, a que mais gostava. Tempo depois passei a gostar da idéia do direito, tinha influencia do meu pai e da minha irmã que discutiam o assunto em casa, pois eram estudantes desse curso superior. Na escola me sobressaia com a argumentação, que desenvolvi muito devido a essa realidade que vivia, com 13 anos não havia júri simulado que eu perdesse para meus colegas.
Essa habilidade me relegou a possibilidade de questionar o mundo ao meu redor e tentar ver tudo por outros ângulos. Mesmo assim, o local onde crescia me fazia fechar a visão e me manter restrito ao que os outros pensavam dentro de uma lógica católica. Continuei ganhando peso e mudando de idéia quanto ao que queria ser, mas sabia exatamente o que deveria ser, pelo menos socialmente, para não decepcionar aqueles que eu amo.
Pesando 64 kg cheguei ao temido vestibular, hoje sei que ele não é nada perto do que devemos passar depois, enfim devia decidir o que queria para minha vida e tinha medo da escolha. Recordei-me dos babilônios e ainda tinha a influencia de minha irmã e meu pai que me faziam pender para o direito. Então fiz três vestibulares, dois para história e um para direito, passei no de direito e nos outros não. Duas semanas depois de começar a aula recebi a chamada do curso de história, na cidade que queria morar desde o início do meu ensino médio. Gostava da cidade, pois me sentia em casa assim como na cidade onde cresci, não sentia um estranhamento como sentia em relação às outras cidades. Em dois dias mudei minha vida e a cidade onde residia. Comecei as aulas de história e fui aprendendo a libertar-me das idéias conservadoras de onde cresci, assim, me permiti questionar as coisas e vê-las de outros ângulos.
Foi quando algo que já fazia parte de mim, que sabia, pois já havia experimentado, mas não aceitava devido a essa venda que peneirava minha visão, começou a se libertar. De certo modo a distancia do olhar familiar facilitou isso, pois não poderiam saber e controlar mais isso. Continuei progredindo nos meus estudos, fazendo atividades paralelas que pudessem me tornar uma pessoa da qual meus pais poderiam se orgulhar. Alguns momentos comecei a entrar em choque por causa dessa mudança, entrar em coque com a visão que meus pais possuíam ou ainda possuem. Não sei ao certo o que eles pensam de mim, se sou o que eles gostariam. Mas me esforço pra ser alguém de quem eles possam se orgulhar, por conseguir ter autonomia. Mas essa autonomia, pode também não condizer com o que eles sonharam quando eu tinha 3,9 kg, também pode não condizer com o que eles pensam e isso pode ser um problema.
Queria só que os pais das pessoas entendessem que não somos adendos deles, muito menos copias de carbono que devem ser aquilo que eles querem, pois somos indivíduos, temos nossos sonhos, nossas escolhas. Acredito que a educação que me deram por outro lado não se opõem a isso. Quero que se orgulhem das coisas que alcanço da pessoa que sou com defeitos e qualidades, mas que não estão ligadas necessariamente ao que sinto em relação a outras pessoas. Algum tempo que minha irmã já sabe dessa preocupação que tenho e do medo da reação dessas duas pessoas que amo.
Hoje com 74 kg e 22 anos de existência revejo essa trajetória, pois necessito contar coisas sobre mim, que não deveriam ser um problema... Mas para a sociedade que vivemos, em alguns casos é, por isso essa visão dos meus pais. Sei o que eles me ensinaram como devo me portar como pessoa, tentando ser o melhor no que faço, sendo sincero com as pessoas que me relaciono tendo palavra. Por esse dever de ser sincero já está mais do que na hora deles saberem de algumas coisas das quais eles não tem culpa e nem eu, deve ser encarado como algo normal.
A condição que nasci masculina me faz feliz e não quero mudar isso, não teria porque mudar se me sinto bem comigo mesmo. Só quero que entendam que quando me relacionava com uma garota na adolescência algo sempre causava um estranhamento, pois no fundo já sabia que não amaria essas futuras mulheres como chegaria a amar um homem. Não devo entrar em discussões profundas sobre isso ser normal ou não, mas se deus que vocês tanto acreditam criou as pessoas para se amarem qual é o problema dessa relação? Porque ela não condiz com pressupostos católicos da idade média, em que esse tipo de relação não serve para a reprodução humana. Por esse mesmo motivo eles são contra preservativos, que faz com que tantas pessoas morram por essa idéia. Acredito que esteja na hora de vocês tentarem fazer o que faço e questionar algumas coisas tentando olhar por outro ângulo. A natureza não racional, como diriam alguns filósofos, se permite essa diversidade, por que o ser humano, cheio de sentimentos, deve se privar do que sente para manter padrões inventados num período conturbado da história. Não acho que vocês sejam tão fechados assim, a ponto de não se permitirem perceber o amor de outras maneiras, como seres amantes como o são.
Eu não vou me perder no mundo por causa dessa questão, talvez eu tenha que me esforçar muito mais pra me sobressair, combatendo o preconceito que existe, e isso sim podem ser uma preocupação de vocês, de como vou me sair nessa condição. Mas vocês conhecem a educação que me deram e sabem que mesmo assim vou ser uma pessoa digna e sincera, preocupada com pessoas que precisem assim como vocês o são. Não deixarei de ser o Carlos por causa disso que conto pra vocês agora.
Amo-os mais que tudo... E só quero ser feliz. Acho que isso é o principal sonho de vocês. Mas tenho meu jeito de ser feliz e espero que compreendam isso, e aceitem, mesmo que não venham a concordar.
Um Abraço bem apertado.